Pioneira no esporte, jornalista lembra preconceito e briga com Milton Neves
UOL Esporte
07/10/2013 06h00
Em setembro de 1986, a jornalista Regiani Ritter ligou o rádio de seu carro e não acreditou no que ouviu. Ela voltava da cobertura de mais um jogo do São Paulo e queria acompanhar o fim da rodada do Campeonato Brasileiro. Na rádio Jovem Pan, Milton Neves comentava o jogo do Corinthians.
"Eu conheço um cara no futebol, um jogador, que ele é maravilhoso, ele é espetacular, ele é um bom caráter, ele é um grande atleta, ele é um grande goleiro, mas é um pé gelado! Esse Carlos é um pé gelado…".
O jornalista repetira o mesmo comentário que Regiani tinha feito três meses antes, quando o Brasil havia sido eliminado pela França nas quartas de final da Copa do Mundo, nos pênaltis. "Eu queria matar o Milton Neves a dentadas", desabafa a jornalista em entrevista ao UOL Esporte.
Primeira mulher ocupar a função de repórter de campo no Brasil, Regiani Ritter comentava futebol, à época, no programa Mesa Redonda, da TV Gazeta, e recorda com clareza daquele comentário repetido por Milton Neves e de quando previu a eliminação da seleção brasileira assim que Telê Santana foi anunciado como o treinador. Nas duas ocasiões, ela foi xingada e escutou que "mulher não entende nada de futebol".
"Em 1986 foi estapafúrdio, estapafúrdio, não tem outro termo. O Avallone gritava 'Telê Santana! O Mestre anunciado como o técnico da seleção!'. Comemorou, gritou, babou, cuspiu. E eu sempre a última a falar e a primeira a apanhar. Quando o Avallone perguntou minha opinião e eu virei para a câmera e falei 'perdemos mais uma Copa', eles desabaram sobre mim. Eram quatro ou cinco homens gritando comigo, eram quatro ou cinco homens falando barbaridades pra mim. Naquele dia, o Avallone me odiou".
Mesmo com tantas reclamações, o palpite de Regiani se provou certo. A jornalista diz que nunca deu palpite sobre um jogo sem saber do que estava falando e daquela vez não foi diferente. Segundo Regiani, Telê estava apaixonado pelo tênis, esporte que passou a praticar. Além disso, acabara de voltar da Arábia, onde ganhou muito dinheiro, o que lhe rendeu uma situação de folga e conforto. Por isso, a repórter tinha certeza que o treinador iria errar na convocação.
"Eu disse: Ele vai convocar errado, vai insistir em algumas figuras de 82 que não têm mais condições de jogar. Ele está se sentindo muito superior, é fase, vai passar, todo mundo passa por isso. Por estar se sentindo muito superior ele vai terminar a Copa do Mundo brigado com a seleção brasileira inteira, com a comissão técnica, dirigentes e jogadores. E a nossa participação vai ser horrível".
No dia 21 de junho de 1986 o palpite foi confirmado e Regiani poderia, mas não devolveu as críticas dos colegas de trabalho. "Não é do meu feitio, jamais abriria a minha participação com: Eu não falei?". Bem longe de feliz, Regiani conta que estava "P da vida" e inconformada com o pé frio do goleiro Carlos nos pênaltis. Assim, chamou a atenção para os erros do jogador e para o azar no famoso lance em que a bola bateu na trave, em sua nuca e entrou no gol.
Apresentador do programa, Milton Neves, no entanto, não gostou do comentário. "Regiani Ritter, você não entende nada de futebol. Isso é coisa de se falar?", retrucou ele. "Cala a boca, a minha vontade era falar 'cala a boca'. Ele falou vários minutos e eu não abri a boquinha, quando abri a boca para falar, ele começou a gritar comigo e me xingar.", relata ela.
Três meses depois, Milton Neves, na Rádio Jovem Pan, repetiu o comentário que "quase matou" a colega de trabalho. Muito brava com a situação, Regiani só pôde tirar a história a limpo alguns anos depois, quando ele participou do seu programa na Rádio Gazeta.
"O Milton Neves é muito inteligente. Perguntei para ele daquele Mesa Redonda e ele me respondeu: Levei nove longos anos para me arrepender", conta ela, imitando a voz do jornalista e garantindo que, apesar de tudo, o adora.
O vestiário
Regiani não guarda muitas recordações do passado, só algumas mais marcantes e, em quase todas elas, há um episódio de dificuldade que passou por ser mulher em um meio dominado por homens.
A primeira vez que entrou em um vestiário para fazer uma entrevista foi meio por acaso. Era após uma derrota do São Paulo e a torcida jogava objetos no gramado em protesto. A repórter tentava uma entrevista com o técnico que, para não serem atingidos, a puxou pela mão e levou para o vestiário.
"Correu jogador para todo lado. Mas, mais para frente, eles passaram a agir normal. Na quarta vez que entrei eles já estavam acostumados comigo."
Certa vez, porém, foi expulsa do vestiário do São Paulo por um dos conselheiros do clube. "Você pode se retirar do vestiário, por favor, porque não é permitido mulher aqui", teria dito ele. "Ah, obrigada. Um dia eu vou querer saber o seu nome para agradecer porque eu não estou com muita vontade de trabalhar hoje", respondeu ela.
Enfurecida, Regiani Ritter deixou o vestiário. Há anos cobrindo o clube, ela nunca havia sido expulsa e aquilo a tirou do sério. A situação foi tão desagradável que chegou aos ouvidos do então presidente do clube, Carlos Miguel Aidar, que foi resolver a questão pessoalmente.
No vestiário, Aidar falava eloquentemente e gesticulava com aquele homem alto e elegante, de camisa de seda italiana e sapatos de cromo alemão. O conselheiro, após entender o recado, deixou o vestiário.
Regiani então resolveu voltar a trabalhar. Chamou o câmera e foram entrevistar os jogadores. Antes da primeira entrevista, porém, o elegante conselheiro voltou a aparecer, desta vez com uma caixa de vinhos na mão.
"Você não acredita! Ele voltou com uma caixinha com três garrafas de vinho de São Roque, sabe aquelas de dois reais cada uma na época? E falou: 'Eu queria muito que você aceitasse essa lembrancinha como prova do meu arrependimento pela grosseria que eu fiz'. Eu olhei para a mão dele e falei: Esse deve ser o preço das mulheres da sua família, as mulheres da minha família não têm preço".
Para Regiani, mulheres tanto não podem despencar como têm que batalhar pelo o que querem, assim como ela fez. As represálias em discussões sobre futebol, como as que teve no "Mesa Redonda", ela acredita que são muito mais fortes por ela ser mulher e que a instituição 'clube do bolinha' ainda resiste, mas que já está menor.
"Quando comecei, fui armada com quatro pedras em cada mão. Fui soltando as pedras devagarinho, sem ninguém perceber. Senti que achavam que eu era 'mais uma que vai passar'. Mas com o tempo os bons começaram a me respeitar e os não tão bons passaram a me olhar de lado, de esguelha", conta.
Hoje, ela comemora ter escancarado as portas para as mulheres no jornalismo esportivo e sente orgulho de ser nome de troféu. Em sua homenagem, a Associação dos Cronistas Esportivos do Estado de São Paulo criou o Troféu Regiani Ritter que premia todos os anos uma jornalista esportiva de destaque.
"Se a mulher pode ser presidente da República, pode ser Primeira Ministra, ser a mulher mais influente na economia da Europa como é a Angela Merkel, da Alemanha, por que não pode ter mulher no jornalismo esportivo?", questiona. "Quando eu comecei, era um negócio feio. Era o mundo do bolinha e a luluzinha não entra, menina não entra. Aí eu falei: quem disse que não entra? Eu vou entrar. Vim da roça, sou xucra, e juro que não pensei que a repercussão seria tão grande. É muito bom, é gratificante. Não é a fama, é a importância de ter feito o que fez profissionalmente".
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