"Osmar Santos nasceu narrando. Eu o admiro até hoje", diz Oscar Ulisses
Aquele soco na mesa interrompeu o primeiro aprendizado de Oscar Ulisses em seu sonho de se tornar narrador de futebol. Foi o pai, Romeu, cansado com a transmissão do almoço.
Era assim: "E pega o feijão, e passa o arroz, lá vem Osmar e pega dois ovos, não pode Osmar. Lá vem o bife de dona Clarice. O bife não tá muito grande, mas tá bem acebolado".
Chega!, gritou o pai. "Acabou essa ladainha". E Osmar, Osório, Oscar e Odinei passaram a narrar a bronca do pai, cada um com sua entonação.
Na verdade, a entonação era de Osmar. Ele era o craque. "Nasceu narrando", conta Oscar. A família morava em um sítio, na zona rural de Osvaldo Cruz. Osmar, 11 anos, palmeirense, e Osório, nove, santista, caminhavam juntos dois quilômetros por dia para tomar o ônibus.
Iam narrando. O caminhar dos animais, a mudança das nuvens, a chegada do ônibus. E os gols de seus times. Até que Osório, cansado de ouvir os gols do Santos narrados sem nenhum brilho, pediu ao irmão mais velho. "Vamos trocar, Osmar. Você narra o Santos e eu narro o Palmeiras".
Com 13 anos, Osmar Santos conseguiu um emprego na rádio de Osvaldo Cruz. Era narrador de estúdio. Depois, foi para o campo narrar partidas de futebol. Com 18 anos, já estava em Marília. "Ele mandava no rádio da cidade. Já era o grande nome, já era a revelação. Então, resolveu promover um campeonato dente de leite e me deu a primeira chance", lembra Oscar Ulisses.
Não foi uma chance como jogador, apesar de preencher os requisitos: ter menos de 12 anos e menos de 1,50m. "Eu me inscrevi, mas ele tinha outros planos. Arrumou alguns narradores dente de leite para narrar no domingo pela manhã. E eu fui. Tremendo, angustiado, mas fui", lembra Oscar.
Na primeira narração, Osmar ficou no ponto. Ele narrava e Oscar repetia. Repetia tudo. Até quando Osmar errou e disse: "epa, espera aí, errei". Oscar repetiu e foi para o ar.
A partir daí, começou uma carreira vitoriosa. Oscar foi narrador no Paraná e depois veio para São Paulo, a convite do irmão. Narrou muitas Copas do Mundo, muitos campeonatos de Fórmula-1. Viu, por exemplo, a chegada de Senna a um mundo dominado por Piquet. "Ayrton Senna era um gênio e um garoto mimado. Piquet era um tremendo piloto e um cara que se fez sozinho. Foi um choque o encontro entre eles em um período ótimo para o Brasil", diz Oscar.
Aproveito para repetir a comparação. Osmar era o gênio e Oscar, um tremendo narrador. "Opa, aceito na hora. E me sinto honrado. Houve uma época em que a comparação com ele me incomodou. Foi em 1980 e me transferi para a Bandeirantes. Depois, voltei a trabalhar com ele. Osmar é um Everest. Você tem duas opções: ou escala ou fica no chão, admirando. Eu admiro até hoje".
Por decisão de Oscar Ulisses, a entrevista muda de rumo. "Prefiro falar sobre o Osmar. Falo melhor sobre ele do que sobre mim".
O irmão, para ele, está no panteão dos narradores. Há poucos juntos com ele. "Osmar é como Fiori, Pedro Luiz, Haroldo Fernandes", diz. A importância pode ser vista na maneira como o estilo influenciou tanta gente. "Tem muita gente com o ritmo nervoso, com as palavras parecidas, mas há uma diferença muito grande. O Osmar tinha uma bagagem intelectual. Ele se ligou a pessoas de esquerda, foi aluno do Suplicy, foi amigo do Juca Kfouri, estudou, se ligou ao Covas, esteve na campanha das diretas. Ele construiu um estofo. Ninguém tem isso. Eu até leio o Philip Roth, mas não é igual".
Osmar, era na visão de Oscar, um Midas. Pelo menos na busca dos bordões. "Qualquer frase chinfrim virava um sucesso. Ele punha o pecado no ar, como foi no caso do animal. Quem ia fazer aquilo? Era um caldeirão, uma usina de ideias".
Estava em uma boate famosa, o Papagaio. Um sujeito bêbado passava por ele toda hora, apontava os dois dedos e dizia uma bobagem que ninguém entendia. "No domingo seguinte, ele soltou o ripa na chulipa e foi o sucesso total. A gente estava junto e ficou incomodado com o bêbado. Ele aproveitou e lançou o bordão".
Foi ver "A cor do dinheiro" com Tom Cruise e Paul Newman, que jogavam sinuca. Cruise venceu e saiu gritando pela rua. "Na narração seguinte, o Osmar entrou com 'é um animaaall, é um animaaal"', lembra Oscar. Os jogadores não gostaram. Mas a torcida do Palmeiras gostou e transformou Edmundo em seu animal preferido. "Depois disso, todo mundo queria ser chamado de animal".
Em 23 de dezembro de 1994, Oscar Ulisses chegou em casa e viu a secretária eletrônica brilhando. A luz vermelha dominava o ambiente. O número de chamadas era grande. Todas com a voz angustiada e chorosa do amigo Jair Bala. "Ele falava você viu o que aconteceu com o Osmar, você viu, que tristeza e chorava. Aí, fomos atrás do assunto".
Osmar Santos até hoje cultiva uma mania. Gosta de acordar na cidade em que tem compromisso agendado, seja ele matutino ou noturno. Por isso, em uma noite chuvosa, viajou de Marilia até Biriguí. E Oscar conta o resto:
"Ele estava sozinho. Vitor, o filho dele, desistiu de ir. Estava com uma Mercedes muito sofisticada, toda segura e bateu em um caminhão que estava atravessado na pista por causa de um motorista embriagado. O carro não sofreu nada, mas o para-choque do caminhão acertou a cabeça dele. Duas pessoas que estavam guiando uma caminhonete viram tudo e levaram para o hospital em Lins."
"O médico clipou a artéria cerebral média e estancou a hemorragia. Enquanto isso, a gente negociou com o governador para permitir que um avião do plano de saúde decolasse para Lins. É preciso comprovar urgência para isso. Conseguimos e o Osmar veio para o Albert Einstein. Foram 90 dias no hospital. Trinta dias em coma. Quando ele acordou, depois de 30 dias, estava em estado vegetativo. Tinha havido perda de massa encefálica. Dormi muitas noites lá. Ouvi muitas histórias sobre o cérebro, uma máquina indecifrável."
"Tínhamos muito medo de perder o Osmar. Nas primeiras noites, a chance de vida era de 10%. Uma semana depois, havia chances maiores. Mas, ele vai acordar? Como vai acordar? O que vai acontecer? Quando ele abriu o olho, 30 dias depois, não sabia de nada. Era um olhar distante, não reconhecia ninguém. Mas saiu da UTI."
"Até que um dia, os filhos foram visitar. Vitor tinha sete anos e Lívia, cinco. Osmar olhou, sentou e chorou. (Agora é Oscar que se emociona). Todo mundo chorou junto. Oscar abraçou os filhos. Queria trazer para dentro dele, tão forte era o abraço."
"Mudou o patamar da recuperação. Acabaram as dúvidas sobre o futuro. Ele podia esquecer muita coisa mas tinha jeito de melhorar. E melhorou muito. Cada sinal era comemorado com rojão. Quando ele queria apagar a luz, só ficava olhando. Um dia, queria se sentar, apontou a cadeira e fez sinal de positivo. Aquilo foi uma vitória espetacular. Era sofrido. Todo mundo sabia que haveria sequelas, mas ninguém pensava nisso. Com 70 dias, ele teve uma embolia e foi preciso uma operação nova. Foi outro sufoco, mas passou bem por ela."
"A situação de Osmar levou à separação. A convivência é difícil. Ele estava na cama, minguou, ficou uma chama pequena, foi difícil manter o casamento com a Rosa. Ela pediu a separação. Os filhos, evidentemente, ficaram com ela."
"E separação envolve economia. Teve um processo e a família não concordou. O Osmar não podia se explicar, não podia se defender e nós pedimos novo processo. A Justiça permitiu e conseguimos um quinhão maior. A Justiça permitiu. Houve desgastes mas hoje está normal. Olhando para trás, é normal. Tempestade se desgasta, depois olha para trás e está tudo normal. Osmar faz de tudo, menos abotoar ao punho da camisa direita. E fala muito."
Osmar Santos ainda é contratado da Rádio Globo. Todo ano seu vínculo é reformado. Há pouco, Oscar teve uma oportunidade de sair e a direção foi clara. "Com você a gente negocia, mas o Osmar fica. Não tem conversa".
E ele faz de tudo para exercer seu papel. Houve um almoço em que um dirigente da Globo disse repetidas vezes a Oscar que estava esperando que ele levasse Osmar ao Rio. Oscar cedeu, sem fazer muita fé no convite. Então, o diretor dirigiu-se a Osmar e disse que ele é que levaria Oscar. Ele seria o responsável.
Ao mesmo tempo, Oscar Ulisses combinou com Osmar que os velhos bordões apareceriam durante as narrações. Coisa como "duudududupiru e pimba na gorduchinha". Osmar ficou todo feliz.
Começou a narração e nada de entrar o dududududupiru. Osmar ligou e Oscar atendeu. "Piruuuuuu", disse. "Não deu, Osmar, fica para a próxima", disse Oscar.
A cobrança continuou. Osmar Santos é vaidoso, um verdadeiro pavão, conta o irmão. E a cada cobrança, a irritação aumentava. "piruuuu!". "Não rolou, Osmar, daqui a pouco".
Terminou o jogo e nova ligação. Oscar atendeu e foi ofendido: "cuuuuuuuuuuuu". E, em seguida, surpreendido com a memória do irmão. "Rioooo? Oscar? Nãooooooo". Havia sido suspenso daquela viagem.
Então, meu amigo, quando ouvir Oscar Ulisses dizer que está na Globo, "na equipe de Osmar Santos, meu eterno chefe", é verdade. E, mais verdade ainda, ele gostaria de dizer "Osmar Santos, meu eterno chefe, meu amigo, meu irmão, camarada, minha bússola, meu Everest".
Luís Augusto Simon
Do UOL, em São Paulo
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