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Fala de Burnier reacende discussão sobre preconceitos no futebol brasileiro

UOL Esporte

05/09/2018 04h00

"A polícia já tem alguma pista dos criminosos? Estão roubando o próprio time agora, é isso?" — José Roberto Burnier.

José Roberto Burnier, apresentador da Globo News, chamou uma reportagem sobre o assalto à Arena Corinthians com o comentário anterior, mal recebido entre os corintianos, clube que assume ser popular e constantemente convive com a ironia de torcedores rivais que o associam à criminalidade. O jornalista se arrependeu, mas sua fala expôs novamente a discussão sobre o preconceito de classe social no futebol brasileiro, assunto que, na verdade, surgiu ainda nos primórdios da modalidade no Brasil.

Desde sua origem no Brasil, o futebol era um esporte exclusivo de uma elite, como reforça Marcel Diego Tonini, pesquisador da Universidade de São Paulo e responsável por trabalhos de mestrado e doutorado sobre o tema "negros no futebol". O menosprezo às classes mais baixas era acoplado ao racismo.

"São construções que foram feitas há muito tempo e que ainda hoje, infelizmente, acabam sendo reproduzidas. Deveriam ser abolidas essas frases justamente para não reproduzir tanto uma discriminação social e racial, ou a associação crime e pobreza sem uma devida problematização, quanto também uma ideia falsa do que é um determinado clube em comparação com os outros", afirmou, em conversa com o UOL Esporte.

Em tempos de discussões acaloradas sobre preconceito, especialmente nas redes sociais, a fala de Burnier rapidamente gerou indignação de corintianos.

A associação com a criminalidade e a utilização de termos como "favelado" – esse não utilizado por Burnier, mas comum para se referir a corintianos e flamenguistas -, na visão de Marcel Tonini, tem peso tal qual outros tipos de discriminação denunciados cada vez mais, como a homofobia e a xenofobia.

"Parece-me mais gritante essa questão homofóbica do que essa questão racial e social, cristalizada há muito mais tempo. Independentemente, é evidente que a gente deve ter cuidado com os termos que escolhemos para falar de determinados times ou mesmo sobre a origem e associações cristalizadas acerca de seus torcedores e jogadores. Tratar como 'ladrões' é, sem dúvida, uma discriminação social e racial", reforça o pesquisador.

"Uma coisa é o jornalista de classe média, classe alta, falar isso de torcedores de determinado clube, e outra coisa são esses próprios torcedores com essa origem acabar assumindo isso para si, até como forma de resistência. É muito diferente. (…) Não é um apelido (favelado), é uma discriminação social e racial perante determinados torcedores, os quais representam, de alguma maneira, toda uma população que sofre as mais diversas exclusões possíveis", acrescentou o autor do estudo.

Rebaixar quem é do povo

No livro 'Futebol: Ideologia do Poder', o autor Roberto Ramos evidencia como a questão das classes nasceu com uma disputa classista sob a ótica da burguesia industrial na Inglaterra. O esporte era tratado, segundo o escritor, como um 'meio de despolitização dos trabalhadores', uma manobra simples de distração para aliviar qualquer possível motim de classes mais baixas.

"As massas do proletariado industrial começaram a interessar-se por este esporte. Os empresários ingleses aproveitaram a oportunidade e fomentaram o seu desenvolvimento. O objetivo era claro. Eles precisavam manter os operários à margem da atividade política dentro de suas organizações de classe", escreve o autor no livro lançado em 1984.

No Brasil, pessoas fora do ambiente burguês se interessaram pela modalidade e enfrentaram barreiras para invadir o esporte da elite. O surgimento corintiano em 1910, por intermédio de operários, espontaneamente vinculou a imagem do clube como um símbolo popular, fomentado durante o mais de um século de história.

"São construções que foram feitas ao longo do tempo e de alguma maneira são cristalizadas. Alguns clubes são vistos como de 'elite', outros clubes como de 'classe baixa'. Ao longo do tempo, essas construções foram feitas, refeitas, reproduzidas, reiteradas", explica Tonini.

"Ainda hoje, a gente vê bastante na mídia essa ideia, por exemplo, de que o São Paulo é um clube de "elite', e de que o Corinthians é um clube "popular". Quando, na verdade, todos os clubes grandes têm torcedores de elite e torcedores populares", completa o pesquisador.

Rivais utilizam justamente estas conexões como forma de rebaixar o outro polo da discussão. Corintianos, por exemplo, repetem termos preconceituosos com o objetivo de ofender adversários – o homofóbico "bambi" é um dos maiores exemplo. Assim, Tonini vê a problematização como uma forma de abrir um debate sobre o preconceito social no esporte mais popular do Brasil.

"O termo 'favela' tem relação com a Guerra de Canudos. Associar o morador desse local com criminalidade, embora difundido no imaginário social, é não só um equívoco como discriminação social e racial. É algo para ser discutido profundamente com o devido cuidado", conclui.

A discussão dividiu opiniões também entre os leitores do UOL Esporte. Algumas pessoas afirmaram que Burnier errou em relacionar a criminalidade com um time que se intitula do "povo". "Acho que este tipo de comentário em um ambiente de torcedores até que é compreensível, porém em um programa de TV, me pareceu muito de mau gosto e clubismo, incentivando a violência entre torcidas e até contra o próprio jornalista.", opinou um.

Outros, no entanto, acreditam que se tratou de um erro do apresentador da "Globonews". "Sou corintiano e pelo lugar e circunstância onde foi feita a piada, acredito que ele tenha sido infeliz sim. Mas também não podemos crucificar o cara. Já passou".

Brunno Carvalho e José Edgar de Matos
Do UOL, em São Paulo

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