Polêmica no Atacama: ponto turístico segue fechado após gravação do Off
Quem pretende conhecer ou tem viagem marcada para o Deserto do Atacama, no Chile, terá de tirar Piedras Rojas da lista. Ao menos por enquanto. Um dos principais pontos turísticos da região, o local paradisíaco está fechado para visitação desde o início do ano – e por tempo indeterminado. A interdição aconteceu depois de uma gravação de kitesurf feita pelo Canal Off para o programa Kite Extremo, em dezembro do ano passado.
De acordo com órgãos chilenos procurados pelo UOL Esporte, a proibição do acesso deu-se justamente após o episódio em que os atletas brasileiros Reno Romeu e João Daniel Edde praticaram o esporte nas lagoas das Águas Calientes 3 do Salar de Talar, em San Pedro de Atacama, na província de Loa, região de Antofagasta, no Chile.
A polêmica começou quando, ainda em dezembro de 2017, meios de comunicações do Chile começaram a repercutir um vídeo de uma pessoa realizando kitesurf, no Salar de Talar. Inicialmente, a ideia era de que se tratava de alguns turistas desavisados, como explica Daniela Silveira, da agência Atacama Trips, responsável por denunciar o ocorrido às autoridades.
"Eu que fiz a denúncia do Off e dos atletas. Quando apareceram as imagens de turistas fazendo kitesurf em Águas Calientes, ninguém sabia quem era. Todo mundo estava procurando a agência que teria levado eles até lá, mas não encontraram. Então achamos que eram turistas irresponsáveis", conta Daniela em entrevista ao UOL Esporte.
Crédito: Reprodução/Facebook
O QUE DIZEM AS AUTORIDADES
De acordo com autoridades, o episódio foi a gota d'água para a proibição do acesso ao local. Em contato com o UOL Esporte, Claudio Yáñez Salazar, diretor regional do SERNATUR (Serviço Nacional de Turismo) na Região de Antofagasta, órgão ligado ao Ministério de Economia, Fomento e Turismo do Governo do Chile, explicou o impacto que a gravação do Canal Off provocou na área, que é cercada por uma comunidade indígena (Socaire).
"É um local cujo ecossistema é de alta fragilidade, em que você geralmente pode ver a presença de flamingos, aves de fácil estresse, além de ancestralmente manter a ocupação indígena pela comunidade de Socaire, de origem Licanantay (Atacamenhos) e é considerado um território sagrado. Essa situação afetou profundamente a comunidade indígena, que alega falta de critérios do turista para realizar essa atividade, o que levou a uma decisão no setor pela comunidade Socaire, proibindo o acesso a todos os visitantes".
As manifestações pelo fechamento do acesso começaram no dia 7 de janeiro de 2018. Cerca de uma semana depois, a comunidade de Socaire convocou uma reunião informativa para divulgar o motivo para a proibição.
Crédito: Reprodução/Instagram
"Naquele dia, se verifica a degradação da terra, lixo e pichações na área de Aguas Calientes 3. Tomam conhecimento da situação a I.M. de San Pedro de Atacama, CONAF (Corporação Nacional Forestal) da região de Antofagasta, Governo Regional, CONADI (Corporação Nacional para o Desenvolvimento Indígena), órgão de apoio à causa dos índios no país, o próprio SERNATUR e representantes de grêmios, entre outros. No dia seguinte, 16 de janeiro, ocorre uma reunião no Governo Provincial de El Loa, convocado pelo Governador Regional, representada pelo Governador de Loa, onde os serviços públicos são orientados a fornecer apoio técnico para a comunidade de Socaire, de modo que possa solicitar concessão do setor de Águas Calientes 3 ao Seremi – Ministério de Bens Nacionais", diz.
"Segue sendo respeitado esse acordo e a recomendação e convocação da SERNATUR quanto à abstenção de visitação ao local em questão, até que a comunidade ingresse com pedido de concessão territorial", acrescenta.
Vale destacar que a região já vinha há algum tempo sofrendo com lixos e pichações. Porém, de acordo com Daniela Silveira, da Atacama Trips, ainda não era cogitado o fechamento de Piedras Rojas antes da gravação do Canal Off: "O problema do lixo é geral. Piedras Rojas realmente precisa de um projeto ambiental. Mas nunca houve rumores sobre fechar".
A CONAF, Corporação Nacional Florestal da região de Antofagasta, outro órgão do governo chileno a se manifestar, definiu o caso como sendo um "fator contribuinte, junto com outros, para uma situação final de fechamento".
"A atividade realizada pelos kitesurfistas foi um fator contribuinte para a decisão final de fechamento do acesso a Piedras Rojas, uma vez que foi considerada uma ação irresponsável e que incentiva outros a fazerem o mesmo em uma área onde as comunidades estão cientes da alta vulnerabilidade dos ecossistemas", diz.
"Piedras Rojas é um ambiente importante para descanso e alimentação do flamingo chileno e andino, ambos na categoria de conservação "vulnerável", bem como é uma área de corredor biológico e local de trânsito de outras espécies emblemáticas, como a Vicunha (camelídeo do Deserto de Atacama), entre outros, também com problemas de conservação", acrescenta.
A CONAF enfatiza, ainda, que não concede autorização nessa área por não pertencer ao sistema nacional de Áreas Silvestres Protegidas do Estado: "É preciso entender que a área de San Pedro de Atacama é um território onde vivem os povos indígenas atacamenhos, cujo espaço tem sido saturado nos últimos anos pela forte oferta turística e sem regulamentação."
"Essa área em particular não possui uma categoria efetiva de conservação e manejo para a proteção de seus recursos naturais e culturais, o que não significa que fique desprotegida e aberta a qualquer tipo de atividade, já que são áreas tradicionais de uso do povo atacamenho e que vêm sendo afetadas por impactos não apenas na flora e na fauna, mas também nos usos tradicionais das comunidades locais. Portanto, o que se defende é o senso comum e o respeito ao meio ambiente", acrescenta o órgão.
O QUE DIZ O CANAL OFF
Procurado pelo UOL Esporte para dar a sua versão sobre o caso, o Canal OFF diz ter 'consultado pessoalmente os órgãos públicos e de turismo da região para garantir que a gravação fosse realizada em área isenta de proteção ambiental'. A emissora defende ainda que 'a questão do acesso ao parque envolve muitos outros pontos como a degradação causada por lixos'.
"O Canal OFF legitima todo movimento a favor da preservação ambiental e esclarece alguns pontos:
Todas as gravações do canal, em qualquer lugar do mundo, respeitam as legislações locais, ambientais e segurança dos atletas. Especificamente neste caso, a produtora do programa consultou pessoalmente os órgãos públicos e de turismo da região para garantir que a gravação fosse realizada em área isenta de proteção ambiental.
A questão do acesso ao parque envolve muitos outros pontos – conforme relatos da comunidade em redes sociais – como a degradação causada por lixos deixados, pichações etc. Atitudes essas com as quais não compactuamos e somos solidários aos moradores.
O canal repudia qualquer ação que possa causar prejuízo à natureza e ressalta que o respeito ao meio ambiente é um dos seus principais valores. Esse mesmo princípio norteia a consciência de nossos parceiros e atletas."
O canal, porém, não detalha quais foram os órgãos públicos e de turismo da região consultados que deram o aval para a agravação. Em meio a queixas de agências de turismo pela proibição do acesso a Piedras Rojas, o OFF chegou a se pronunciar nas redes sociais, garantindo que a produção "também procurou o Serviço Nacional de Turismo, para garantir a prática e o respeito às normas locais de preservação".
Crédito: Reprodução/Instagram
No entanto, de acordo com o SERNATUR, embora seja uma entidade chilena dedicada à promoção, informação e articulação do desenvolvimento turístico do país, o órgão não tem poderes legais para autorizar qualquer atividade de natureza esportiva. O órgão ainda negou ter recebido pedido formal para a gravação.
Sobre a justificativa do Canal OFF de que obteve a autorização do Serviço Nacional de Turismo para as gravações, o UOL Esporte perguntou ao CONAF se essa medida bastaria ou se haveria a necessidade de aval de outros órgãos e setores que respondem por Piedras Rojas. "Não tendo uma administração específica em Piedras Rojas, deveriam ser consultados o Município de San Pedro de Atacama, o seto de Patrimônio Nacional, que administra terrenos tributários, bem como a respectiva consulta à comunidade indígena de Socaire, que são as pessoas que têm suas demandas de uso e vivem ao lado da área", respondeu o órgão.
O QUE DIZEM OS ATLETAS
Em entrevista ao UOL Esporte, os atletas Reno Romeo e João Daniel Edde dizem que os órgãos que estiveram em contato com a reportagem foram, sim, consultados. Eles afirmam ainda que uma pichação encontrada no local seria a grande responsável pelo fechamento da área e pedem desculpas ao povo atacamenho 'se houve algum desrespeito, ainda que não intencional'. Confira:
Ficamos muito tristes com o acontecimento. Antes de todas as filmagens, em qualquer que seja o lugar do mundo, verificamos se existem áreas legalmente demarcadas e com restrições. Realizamos todo o levantamento nesta região. Estivemos na sede da SENATUR em San Pedro para nos informar quais lagos são reservas naturais, propriedades particulares ou áreas sob qualquer tipo de limitação de uso. O CONAF também nos informou que o lago não faz parte do sistema de Unidades de Conservação da área.
Nossa intenção foi mostrar a beleza dos lugares, seu estado de conservação e a prática do kitesurf, um esporte ecologicamente correto e não poluente. Pelo que soube, a área foi fechada quase um mês após a nossa visita, quando uma pichação foi encontrada. No entanto, nos atribuem o motivo do fechamento, o que nos deixa ainda mais tristes. Ficamos ainda mais impactados com as mensagens de ódio e ameaças até de morte.
Se houve algum desrespeito, ainda que não intencional, pedimos nossas maiores desculpas ao povo atacamenho.
Via redes sociais, os atletas Reno Romeo e João Daniel Edde divulgaram a seguinte nota de esclarecimento, ainda antes de serem procurados pelo UOL Esporte.
"Nos últimos dias temos sido apontados como turistas irresponsáveis que criaram impacto sobre a fauna do setor Piedras Rojas das Águas Calientes do Salar de Tara, no deserto de Atacama. Neste sentido cabe esclarecer:
Somos atletas de kitesurf, um esporte limpo que não polui, que utiliza a força do vento e que se desenvolve em diversos lugares do mundo, em especial naqueles onde condições propícias, beleza e natureza se completam, inclusive áreas protegidas onde o uso público é permitido.
Nos últimos anos, o esporte cresce em todo o mundo e, especialmente, vem sendo a força motriz do desenvolvimento local, gerando emprego, oportunidades e renda para comunidades tradicionais, como ocorre no litoral do Brasil.
A prática em Piedras Rojas não foi realizada por turistas irresponsáveis e sim, por kitesurfistas profissionais que por meio de imagens e informação consciente divulgam o esporte e os mais diferentes locais, sua gente e tradições, como já ocorreu nos lagos da Mongólia, nas ilhas caribenhas, no Egito, Marrocos, África do Sul e no polo Norte, entre tantos outros.
Em todos os lugares, inclusive nos salares e lagos no Chile, e por onde velejamos, coletamos lixo e plásticos na água, um dos maiores impactos sobre a fauna aquática em todo o mundo. Já salvamos espécies animais, inclusive pinguins-de-Magalhães (Spheniscus magellanicus) que foram cuidados por profissionais e devolvidos aos mares patagônicos, com recursos e custos próprios.
No desenvolvimento de nossas atividades profissionais avaliamos previamente os locais onde as filmagens são realizadas, a presença de animais e plantas, de modo que não sejam importunados e respeitadas todas as regras e legislação locais, o que inclui Unidades de Conservação, santuários, áreas de comunidades tradicionais e povos indígenas, áreas privadas e de segurança.
Piedras Rojas não é uma área protegida pelo CONAF, como relata ao jornal BioBioChile o senhor Alejandro Santoro Vargas, diretor da CONAF da região de Antofagasta e especialista em áreas protegidas.
(Alejandro Santoro Vargas, director do Coorporação Florestal Nacional do Chile da região de Antofagasta e especialista em áreas protegidas em conversa com BioBioChile se referiu ao polêmico registro reconhecendo que a prática do turista tem impacto e gera uma alteração mediana no sistema ambiental, porém reversível – a fauna se vai e logo volta, pois o dito salar é uma zona de descanso e alimentação de flamingos e outras espécies, mas não é zona de nidificação. Porém, o diretor foi enfático em destacar que o setor não faz parte da área protegida pelo CONAF e não se encontra sob sua administração. E mais, assegurou, o terreno não tem ação de gestão, nem de conservação do ponto de vista jurídico – Tradução livre). Disponível em http://www.biobiochile.cl/noticias/nacional/region-de-antofagasta/2017/12/20/dano-ambiental-indignacion-causo-video-de-turista-practicando-kitesurf-en-salar-de-talar.shtml
Em nenhum momento flamingos ou qualquer outro animal terrestre ou aquático foram perseguidos ou importunados. As Piedras Rojas não foram sequer pisadas pela equipe. Da mesma forma, cabe deixar bem claro que nas Piedras Rojas e em suas imediações não há qualquer barreira, identificação, placa de informação ou presença de representação da associação de povos indígenas locais ou de qualquer órgão que aponte qualquer impedimento de atividades no local ou que esta seja uma área sagrada. Em outros locais, como o Geiser del Tatio, a presença destas pessoas é efetiva e a gestão admirável.
A restrição de acesso a Piedras Rojas, neste momento, não se deve somente à veiculação de forma distorcida da prática do Kitesurf, mas ao acúmulo de problemas locais como o aumento do turismo de grande escala, que gera lixo, pichações e descarte de dejetos humanos e o avanço das atividades de mineração, entre elas, de lítio. O kitesurf na lâmina da água é de baixo e efêmero impacto.
Desta forma, estamos surpresos com a repercussão especulativa que vem sendo alimentada nas redes sociais, que nao condizem com a veracidade dos fatos e geram o ódio e todos os males da desinformação.
Assim, reiteramos nosso total apoio às comunidades tradicionais e aos povos indígenas de todo o mundo, ao fortalecimento das unidades de conservação, aos projetos de desenvolvimento sustentável e turismo de base comunitária e, neste momento, em especial ao povo atacamenho que luta pela preservação de suas terras e tradições.
Acreditamos que os esportes de aventura, como o kitesurf, possam beneficiar comunidades locais e fortalecer o turismo de qualidade. Respeitamos a natureza, pois dela depende a nossa vida, a nossa forma de viver. Levamos ao público a prática de um esporte saudável e limpo."
O CONAF confirmou que, de fato, a área de Piedras Rojas não é protegida pelo órgão, que não possui sinalização nem pessoal gerenciando o local. Porém, fez uma ressalva: "É a versão do atleta do que aconteceu e se ele não é um especialista em meio ambiente, sua equipe tem alguém assim, é difícil avaliar por essa perspectiva dele, se sua ação gerou algum impacto ou não. A área é um importante corredor biológico de fauna com problemas de conservação e protegido por lei. Se essa pessoa não conhece os respectivos processos ecológicos que ocorrem nesses ecossistemas e sua dinâmica territorial, é difícil afirmar que não houve danos. A atividade que ele realizou pode instar as pessoas locais e internacionais a repetirem tais ações ou pior, sem a avaliação prévia e gerando possibilidades de alterações desconhecidas".
Marcello De Vico
Colaboração para o UOL, em Santos (SP)
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