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Comentarista da ESPN vai de prisioneiro a personagem de TV

UOL Esporte

10/10/2013 06h00

Voz inconfundível na transmissão da ESPN do Campeonato Alemão, Gerd Wenzel tem muita história para contar de seus 70 anos. Nascido em Berlim, na época da Segunda Guerra Mundial (que durou entre 1939 e 1945), o comentarista, que já foi pastor, preso político e hoje vive um "personagem" de TV, relembra dos tempos em que teve de fugir da Alemanha.

"Depois da guerra, Berlim foi dividida em duas partes e minha família ficou na parte oriental, justamente a parte soviética. Como minha mãe tinha conhecidos que estavam vivendo aqui no Brasil, que vieram antes da guerra, acabamos indo para o Brasil. Meu pai tinha falecido em decorrência da guerra, nunca se recuperou dos ferimentos. Saímos de Berlim Oriental só com a roupa do corpo e viemos ao Brasil, onde refizemos nossa vida", disse o comentarista.

Após sua chegada à América do Sul, Wenzel passou por uma vida cheia de aventuras. Ele entrou para a igreja e virou pastor, foi preso em três oportunidades e ganhou uma chance inesperada para se tornar comentarista de TV.

Nesta entrevista exclusiva ao UOL Esporte, Wenzel conta como foi sua viagem da Alemanha Oriental para o Brasil, como foi sua luta contra a ditadura militar no Brasil (regime político entre os anos de 1964 e 1985), relembra quando virou comentarista, na TV Cultura, e as dificuldades que encarou para ter informações sobre o futebol alemão.

UOL Esporte: Como você veio parar no Brasil?
Gerd Wenzel: Eu nasci em Berlim, durante a Segunda Guerra Mundial. Depois da guerra, Berlim foi dividida em duas partes e minha família ficou na parte oriental, justamente a parte soviética. Como minha mãe tinha conhecidos que estavam vivendo aqui no Brasil, que vieram antes da guerra, acabamos indo para o Brasil. Meu pai tinha falecido em decorrência da guerra, nunca se recuperou dos ferimentos. Saímos de Berlim Oriental só com a roupa do corpo e viemos ao Brasil, onde refizemos nossa vida.

UOL Esporte: Isso foi antes da construção do muro dividindo Berlim (N.R.: o muro foi levantado em 1961)?
Gerd Wenzel: Saí antes da construção do muro, na época, havia livre trânsito em Berlim. A fronteira era marcada apenas pelas placas. Existia transporte público entre as duas partes, por isso a gente não pôde levar nada, apenas roupa, para não levantar a suspeita de fugir. Se você fosse pego fugindo, você era considerado espécie de traidor dos ideais patrióticos da Alemanha Oriental. Fugimos e, em Berlim Ocidental, embarcamos em um avião para Hamburgo e depois viemos de navio.

UOL Esporte: Você lembra da viagem? Como foi?
Gerd Wenzel: Eu tinha 12 anos e lembro que era um navio argentino, chamado Yapeyu. Era um navio de imigrantes e muitos desembarcaram na Argentina. E muitos em Santos. A viagem foi uma experiência muito boa em um navio muito modesto, de imigrantes mesmo, sem luxo. A tripulação era toda argentina. Isso foi na época em que o presidente era o Juan Domingos Peron, havia retratos em todo navio. Foi uma viagem longa, de 21 dias, em que fiquei sem ver um pedaço de terra. Quando chegamos ao Rio de Janeiro, foi excepcional, porque fomos todos acordados cinco horas para irmos ao deck assistir ao navio chegando ao Rio. Vimos toda a Baía de Guanabara e o sol nascendo, a primeira impressão foi esse espetáculo da natureza.

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UOL Esporte: E como você se comunicava com o pessoal do navio?
Gerd Wenzel: Não havia nenhuma comunicação, nenhum tripulante falava alemão, eu não falava inglês, era uma confusão geral. É que, em um navio de imigrantes, você não precisa de praticamente nada. Navio é só dormitório e lugar para comer, não tem área para lazer, não tem nada, rigorosamente. Mas fiquei muito enjoado, vomitei muito durante a viagem, foi uma aventura.

UOL Esporte: Como foi o início da sua carreira universitária no Brasil?
Gerd Wenzel: Chegando ao Brasil, fiz o meu curso, completei secundário, e acabei estudando administração de empresa. Logo tomei contato com empresas alemãs, trabalhei em três grandes empresas e me especializei na área de marketing. Passei durante muito tempo trabalhando nelas e depois acabei formando minha própria microempresa de consultoria de eventos corporativos. Me especializei na área de logística, nada a ver com o que tenho feito nos últimos 12 anos.

UOL Esporte: Você também foi pastor. Como foi isso?
Gerd Wenzel: Isso foi na época inicial da minha juventude, que foi bastante controvertida. Antes de fazer curso de administração, antes do marketing, tive relacionamento com a Igreja Presbiteriana. Por conta da minhas questões sociais da época, me formei em teologia e virei pastor, em 1968. Era uma época muito difícil, havia a ditadura militar e, na igreja, o movimento estava resultando numa preocupação mais social do que questões espirituais. Me envolvi bastante, participei e paguei o preço. Na época, foi feita uma limpeza na igreja e todos os pastores, líderes que tinham essa preocupação social da igreja, como analfabetismo, pobreza e miséria, que não estavam afinados com a ditadura, deveriam ser excluídos, e eu fui expulso. Isso foi em agosto de 1968. Depois de ser expulso, fui preso pela Polícia Federal. Fiquei preso por uma semana. Mas houve intervenção da embaixada da Alemanha a meu favor e acabei sendo liberado. Mesmo assim, passei por um processo, que acabou sendo arquivado. Desde então, a igreja não mais me interessou, deixar a carreira eclesiástica e comecei uma nova vida profissional.

UOL Esporte: Você foi preso quantas vezes?
Gerd Wenzel: Três vezes. Uma outra vez em Belo Horizonte, quando trabalhava na Mercedes, fui preso na porta da casa pela Polícia Federal, fiquei um dia preso. Me liberaram depois que consultaram que meu processo tinha sido arquivado. Depois, fui preso na época em que queria sair do Brasil. Para sair, precisava ter visto de saída e meu passaporte estava preso no Dops (Departamento de Ordem Política e Social). Tive de ir ao Dops para dar explicações quanto ao meu movimento. Aí acabaram liberando meu passaporte.

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UOL Esporte: Quando surgiu a oportunidade de ser comentarista?
Gerd Wenzel: Um grande amigo meu era gerente de relações públicas na Bayer, o Antônio Alberto do Prado. Ele me ligou em 1991 e perguntou se eu entendia de futebol. Eu falei que acompanhava, entendia, pois tinha ido muito ao estádio. Depois, perguntei o motivo e ele disse que a Bayer ia patrocinar o Campeonato Alemão na TV Cultura, entre 1991 e 1993, e precisavam de alguém que falasse alemão, português e entendesse de futebol. O narrador era o José Goes e o comentarista o José Trajano e eu seria uma espécie de tradutor, fazer o link com o que a gente recebia de áudio e vídeo. Disse que nunca tinha feito, mas topava fazer. Em fevereiro de 1991, eu fui fazer um jogo ao vivo, pela primeira vez. Assim, começou a minha carreira como comentarista de futebol, aos trancos e barrancos. Na época, não havia internet, e as informações sobre campeonato eu recebia de um piloto da Lufthansa (companhia aérea alemã). Ele trazia os jornais no fim de semana e eu ficava mais ou menos informado com o que rolava. Dessa forma, a gente informava. Como eu era única pessoa que falava, traduzia muito para a TV cultura, fui me especializando.

UOL Esporte: E a ida para a ESPN?
Gerd Wenzel: O Trajano era diretor de jornalismo, lembrou dos nosso tempos de Cultura e convidou. Em 2002, começou a ter mais peso a minha atividade de comentarista, comecei a participar do [programa] Futebol no Mundo, Linha de Passe, programas da Alemanha e reportagens especiais. Organizei a parte de logística durante a Copa do Mundo da Alemanha (2006) para a ESPN. Hoje, meu trabalho é mais lazer do que qualquer outra coisa.

UOL Esporte: Como fica o coração nas Copas? Brasil ou Alemanha?
Gerd Wenzel: Eu digo que sou a única pessoa que tem oito títulos, cinco pelo Brasil, e três pela Alemanha. O coração fica dividido. Quando você sai da sua terra de origem e cresce em uma nova terra, nunca mais é o mesmo, nunca mais sabe onde estão realmente suas raízes, às vezes lá, outras cá, exatamente isso que acontece.

UOL Esporte: E em 2014? Quem tem mais chance?
Gerd Wenzel: Torço muito futebol bonito, não sei se a seleção de Felipão vai resgatar o futebol bem jogado que é característica do futebol brasileiro, tomara que sim, mas tem pouco tempo. Já a Alemanha joga futebol bonito, mas, a meu ver, tem problemas no comando técnico. O Joachim Löw não está à altura dos talentos, está sete anos à frente da seleção e nenhum título. Sete anos com a melhor geração alemã nas últimas décadas.

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UOL Esporte: Como o público lida com seu sotaque? Você recebe muitas críticas?
Gerd Wenzel: Muitas vezes seu trabalho acaba se transformando em num personagem. Percebi isso com meu público cativo. Agora, o personagem é feito pelo Gerd. Eu encarno esse personagem, muitas vezes inconscientemente. É natural da minha parte. Sou esse personagem dentro da emissora, que apesar de não ter vindo do jornalismo esportivo, passo uma mensagem, que é o objetivo da comunicação. É entretenimento, futebol é diversão. Tem torcedor que aprova esse tipo de trabalho e é uma democracia, cada um pode pensar o que bem entende. Trabalho com muita honra do que faço aqui. Trabalho aberto para receber críticas, escuto, pondero e tiro boas lições.

UOL Esporte: No meio do ano, você ficou de fora da final da Liga dos Campeões entre dois times da Alemanha. Você guarda alguma mágoa por isso?
Gerd Wenzel: A decisão da empresa é soberana, ela vai tomar decisões estratégicas, da empresa, e o interesse pessoal precisa ser deixado de lado. Eu estou tranquilo, já fui para a Alemanha, na Copa do Mundo, vi todos os jogos. A essa altura, eu deveria estar onde? Na minha casa, sentado na minha poltrona bebendo minha cervejinha, cuidando dos meus filhos e netos. Mas o trabalho que tenho a oferecer, ofereço na maior dedicação. Havendo um ou outro jogo, competição maior ou menor, preciso respeitar a soberania da empresa. Vi o jogo com um grande grupo de amigos em Dortmund e assisti no meio da torcida.

UOL Esporte: Para quem você torce?
Gerd Wenzel: Time que eu torço é o Union Berlim. Todo mundo tira maior sarro de mim, diz que é para inglês ver. Mas esse pequeno time é pelo qual meu pai torcia. Está na segunda divisão e dessa vez sobe para a primeira. Aqui no Brasil, eu torço para o Santos. Primeira vez que fui ao Pacaembu, em 1955, eu tinha um amigo corintiano e outro que era são-paulino, íamos ver Santos x Palmeiras. Pelé não estava no Santos, mas tinha um meia esquerda, número 10, Vasconcelos. Santos deu um baile de bola, ganhou por 3 a 1. A partir daquele momento, me tornei santista desde criancinha.

Leandro Carneiro
Do UOL, em São Paulo

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