Copa na TV Manchete já teve ameaça à Globo e morte de João Saldanha
A distância geográfica do maior torneio de futebol do mundo fez o torcedor brasileiro se acostumar com as transmissões de TV em Copas nas últimas décadas e ficar dependente delas. Ir ao estádio naquele momento esperado a cada quatro anos era artigo de luxo para poucos endinheirados ou envolvidos com o espetáculo. Aos fãs que ficavam no Brasil, restava a opção de se juntar aos amigos na frente da telinha e torcer.
E, ao contrário do que muitos pensam ou possam recordar, aquela que hoje se destaca entre os canais abertos nem sempre teve caminho livre na guerra pela audiência na cobertura de Mundiais. Se nas últimas Copas a Globo ditou o ritmo, criou bordões e lançou até músicas temáticas, nos torneios das décadas de 80 e 90 não era bem assim. Com coberturas em 1986 (México), 1990 (Itália) e 1998 (França), a hoje extinta TV Manchete também marcou época nas transmissões.
As histórias passadas pelos integrantes do extinto canal não se resumiam ao que era reproduzido na TV. Em três edições dos mundiais, nomes como Márcio Guedes, hoje na ESPN Brasil, Paulo Stein, atualmente no Sportv, Alberto Léo, que comanda o esporte da TV Brasil, e até o agora global Marcos Uchôa ameaçaram a Globo nas transmissões com resultados inesperados. Também passaram dificuldades até com ataques de aranhas em um hotel e ainda tiveram que conviver com a morte do jornalista João Saldanha um dia depois da final da Copa de 90.
"Foram experiências sensacionais. E cada Copa representou uma fase diferente. Vivemos o auge em 86, tivemos dificuldades em 90 e presenciamos o fim em 98", disse o narrador e ex-diretor da Manchete Paulo Stein, que trabalhou na emissora até o seu fim, em agosto de 1998, após a Copa do Mundo da França.
E foi justamente da cabeça de Stein que partiu a ideia que surpreenderia a Globo na Copa do México. Em novembro de 1984, o comandante da equipe de esporte sugeriu ao diretor geral do canal, Rubens Furtado, que a Manchete se antecipasse no aluguel de satélites para o sorteio e largasse na frente das concorrentes.
"Foi o bote certo. Ganhamos da Globo ali. Naquele período, só existiam três grandes satélites: um bom, um médio e um mais fraquinho. Ele aprovou a ideia e fui atrás. Conseguimos pegar logo o melhor. Em 1985, quando a Globo foi atrás, só tinha um satélite médio, de menor capacidade. E não adiantava pagar, espernear, chamar o Roberto Marinho, nada. Ali nós já tínhamos as melhores linhas e alugado os melhores horários. Com isso, eles ficaram com horários alternativos", explicou Stein.
"Fizemos nosso QG [quartel general] ao lado da concentração do Brasil, passávamos treino, entrevista com jogadores, tínhamos muito mais acesso. A Globo foi surpreendida com a Manchete na Copa. E eles não podiam concorrer porque tinham que dar espaço pra outras coisas, como as novelas. Eles [Globo] não esperavam que nossa cobertura fosse tão boa. A nossa proximidade da seleção facilitou muito. Dia de semana a tarde ficávamos duas ou três horas seguidas, às vezes tinha excesso de informações de relevância, mas a Manchete praticamente entrou na seleção brasileira", recordou o comentarista Márcio Guedes.
E a tal entrada no time de Telê Santana não se deu por acaso, mas sim por uma nova estratégia da emissora. "Alugamos seis rebatedores, que ajudavam a ampliar o sinal e superar as barreiras de morros entre Guadalajara e o local onde a seleção estava concentrada. No primeiro jogo, acompanhamos o trajeto da delegação da porta do hotel até o estádio. Lembro que a Globo ficou maluca e logo alugou uns rebatedores para fazer o mesmo nos outros jogos", disse Paulo Stein.
"Eles (da Manchete) estavam bem instalados, tinham uma equipe grande mesmo. A concorrência era grande mesmo", lembra Luiz Alfredo, hoje na RedeTV! e um dos integrantes da Globo em 86.
Nem tudo, porém, era facilidade para narrador e outros integrantes da Manchete lado a lado com a seleção. Além de ter que transmitir alguns jogos do quarto do hotel com uma televisão muito pequena por falta de posições no estádio, a equipe passou por perrengues no hotel em que ficou instalada. Se quiser ver um dos ex-integrantes deixar o orgulho de lado ao lembrar de 86 e falar com tensão no ar, é só pedir para contar sobre o ataque de alguns bichos que sofreram por algumas noites.
A história causa calafrios quando relatam que eram mordidos por uma espécie de aranha local durante as noites. "As aranhas do hotel são inesquecíveis [risos]. Era um tormento. Eu tinha que lacrar a porta do quarto com fita durex para que elas não entrassem. Era um animal comum na região que ficávamos, em uma área desértica", recordou Stein.
"O problema era o seguinte: pela janela dos quartos tinha varanda e entravam bichos como se fossem uma aranha, e a noite eu percebia isso. Na segunda noite teve uma invasão, foi um negócio assustador, chamei o cara do hotel ele foi lá e tirou mais de 20 desses bichos que estavam lá pelos cantos. E o bicho mordia. Uma mistura que não sei oque era aquilo, tipo aranha. Era assustador estar no quarto com eles lá. Eu não bebida água porque tinha muito medo. Eu não comia lá, só comia fora. Foi uma coisa assustadora nesse sentido, eu dormia mal pensando que poderia ter algum bicho na minha cama. Só de lembrar me dá medo", se recorda Guedes.
Já em 1990, na Itália, as dificuldades não eram na hospedagem, mas também se faziam presentes. Com investimentos reduzidos e apostas em novelas como Pantanal e Dona Beija, a Manchete não incomodou tanto a Globo. Os resultados em transmissões, porém, não chegaram a magoar tanto quanto o fato de perder um comentarista em plena Copa do Mundo.
Com 74 anos e bastante debilitado por conta de um enfisema pulmonar, o ex-técnico da seleção brasileira João Saldanha não aguentou nem mesmo voltar ao Brasil e faleceu no dia 12 de julho. A equipe lembra que ele foi muito debilitado e foi uma preocupação o tempo todo.
"Isso deixou a equipe muito abalada, mas o que me conforta é que ele morreu feliz, fazendo o que gostava. Lembro da alegria dele em estar em mais uma Copa do Mundo. Quando chegou na Europa, estava eufórico. E não sossegou enquanto não pegou sua credencial. Ele já vinha doente há uns dois anos. Se ficasse no Brasil, morreria triste", contou Paulo Stein, um dos melhores amigos de Saldanha.
"Ele não tinha condições de viajar, mas contrariou ordens médicas e foi. Saldanha não foi nem ao estádio de tão sem condições que estava. Ele participava precariamente das mesas redondas. Todos já esperavam que a morte pudesse acontecer. Foi uma preocupação o tempo inteiro", recordou Márcio Guedes.
A teimosia de João Saldanha em viajar doente surpreendeu até mesmo a direção da emissora, que não planejava mandar o comentarista para a Itália. Paulo Stein contou que o falecido amigo simplesmente chegou com uma mala na redação, pediu que o levassem ao aeroporto e comprou sua própria passagem em um cartão de crédito pessoal.
"Eu não acreditei. Ele não tinha a menor condição e disse que ia. Já tinha fugido de hospital meses antes e contrariou médicos mais uma vez. O avião quase parou no Recife, de tão mal que ele estava. Teve problemas respiratórios no voo. Quando chegou na Itália, desembarcou de cadeira de roda", descreveu Paulo.
Além de Saldanha, a Manchete, mesmo com recursos reduzidos, teve nomes como Zagallo e Paulo Roberto Falcão em seu time de comentaristas na Itália.
Quatro anos depois, nos Estados Unidos, a emissora carioca não conseguiu dar sequência às transmissões. Por conta da crise que atingiu a empresa no governo de Fernando Collor de Mello, o canal de Adolpho Bloch não reuniu condições de cobrir o tetracampeonato mundial da seleção de Carlos Alberto Parreira.
Em 1998, mesmo em um de seus piores momentos e prestes a fechar as portas, a Manchete voltou a transmitir uma Copa do Mundo. E se as condições estruturais e tecnológicas não eram das melhores, pelo menos não faltou a tão aguardada diária dos jornalistas.
"A situação era bem ruim, mas o dinheirinho estava lá. Isso não faltou, ainda bem. Eram cerca de US$ 130 por dia. Tinha gente que economizava e até trocava de carro quando voltava para o Brasil", brincou Srein.
Foi o ponto curioso de uma transmissão que acabou marcando o fim do canal. A Manchete encerrou suas atividades pouco mais de um mês após a Copa, em 31 de agosto.
José Ricardo Leite e Pedro Ivo Almeida
Do UOL, em São Paulo e no Rio de Janeiro
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